Delitos da honra...
(título provisório)
Gigio Cossaco
Rascunho monólogo
Alguns lutam por idéias, outros por
terras, outros por dignidade. E o soldado luta por quê? Para quê? Por quem?
Depois de aprovado em todos os testes físicos,
psicológicos e de conhecimentos, finalmente fui matriculado no curso de
soldados da polícia. Começava o meu primeiro dia na formação militar. Muitos
gritos, pressão e correria na hora de formar o pelotão de recrutas pela
primeira vez. A maioria dos presentes nunca tinha sequer pisado num quartel.
“Tinham cheiro de paisano”. Por isso o tranco para nivelar todos dentro da
mesma sincronia, foi forte e inevitável...
- “É correndo aluno!” Posição de sentido não mexe! Do
que você está rindo desgraça?” Vocês vieram do interior porque passavam fome!
Aqui só ficarão os fortes! Marcha direito! Você está parecendo um robô! Mais
que lixo hein?
E foram nove meses dormindo e acordando naquele
alojamento. Às vezes acordava na madrugada, olhava as paredes e me sentia na
clausura. Na verdade não era o corpo que estava preso. A alma é que gritava
silenciosamente como se estivesse sendo sangrada aos poucos, morte lenta,
hemorrágica, agonizante; e o pior, inconsciente. O vigor da juventude nos
submete aos saltos de cegueira, na ânsia de vivermos emoções intensas...
No começo acreditei que pudesse de fato representar os
cidadãos do jeito que nos ensinavam. Engendravam veladamente em nossas mentes
que aquele serviço não era simplesmente um serviço. Mas, um sacerdócio, como se
pudéssemos ter alguma espécie de benefício metafísico no exercício de nossas
profissões. A todo o momento a sensação era a de rejeitar o afeto, extrair as
humanidades. Tudo sutil, muito discreto. Os valores nos eram repassados como se
o restante da sociedade ou o próprio Estado tivesse a polícia como paradigma
moral, um paradoxo infame. Por que justamente a polícia não deixaria de ser
reflexo da sociedade? Os ensinamentos vinham com uma espécie de culpa, algo
assim: “Olha, não vai fazer nada errado, agora você um militar, tem que dar
exemplo, sempre!”... Com o tempo percebia o quanto era falso tal comparação;
até pelas variações nos discursos, dependendo da época ou do interesse de quem
os fazia. Nós, militares, ora éramos colocados acima da sociedade civil, como
seres especiais ou superiores. Ora, colocados como cidadãos submissos,
subalternos e inferiores aos civis, principalmente sobre aqueles que detinham o
poder. Ainda que fosse o político mais corrupto e contumaz; se estivesse diante
de um cargo no legislativo ou executivo, seria sempre, inevitavelmente “digno”
de toda nossa veneração, respeito e submissão é claro!
Questionar nesse meio era quase um convite para a
briga. Na caserna perguntas ofendem e muito; aqueles que hierarquicamente
detinham o micro-poder, através duma hierarquia que foi feita para discriminar,
intimidar e desvalorar qualquer eventual questionamento. O medo sempre vinha
camuflado dos termos disciplina e hierarquia. Respeitá-los significaria caos
interno. Não questioná-los traria sobrevida naquele inferno criado pelos homens.
Nem sempre o clima era rude. Ás vezes ria de nós
mesmos, e de nossos pares quando eles erravam a direção da ordem unida; por
exemplo. Noutras sentíamos certo prazer em rir dos outros, como se quiséssemos
rir daqueles que nos instruíam. Era sádico... Ver o companheiro sendo
achincalhado. Assédio no militarismo é outra piada.
(Marcha soldado cabeça de papel, senão marchar direito
vai preso pro quartel...)
Há uma luta de classes entre Oficiais e Praças... Como
se uns fossem deuses e as Praças os demônios. Mas, o que repetiam
constantemente durante os treinamentos eram frases tipo: “Aqui nascem heróis”.
“Só os fortes sobrevivem”. Alguns sargentos, geralmente os bajuladores,
tentavam imitar a voz de comando dos oficiais. Aí era gozação total! Quando
acabavam as instruções; nos alojamentos dezenas de recrutas como se fossem
papagaios, reproduziam os gritos tentando imitar os superiores: “Anota ele
Xerife”! Ele tá rindo de quê?
Aprendemos aos poucos a usar o corpo como se fôssemos
o próprio movimento. Era como se arrancássemos à alma e emprestássemos o corpo
para um comando qualquer. Sentia-me feito aqueles carrinhos de bate - e -
volta. “Senta! Levanta! Sentado um dois!” E eu tinha que gritar ao mesmo tempo
em que me levantava “Três, Quatro”!
Certa feita vi colegas de outro pelotão fazendo
flexões sob o sol escaldante das onze horas numa segunda de verão. Todos se
levantaram com bolhas e várias queimaduras nas mãos. Só porque alguns
integrantes desse pelotão elogiaram a liderança do outro pelotão. Isso era
inadmissível! No militarismo Maquiavel é guru. “Quanto mais desunida estiver a
tropa, mais fácil será para o comandante explorá-los”. Aliás, alguém já pensou
no que significa tropa? No dicionário é o coletivo de burro. Lembrei-me daquela
música, que se fosse usado o verdadeiro significado, ficaria assim: “Burro de
Elite osso duro de roer, pega um pega geral, também vai pegar você”... A mais
pura coincidência...
Os valores eram ensinados sempre pela imposição numa
cultura de medo, enquanto na prática, as ações internas daqueles que deveriam
dar o exemplo, nunca agiam de acordo com aquilo que nos ensinavam. Furavam
filas do banco, por serem superiores hierárquicos, compravam fiado nos
comércios vizinhos e depois sumiam. Outros pegavam dinheiro com os próprios
colegas e não pagavam. Fora os viciados em caixeta, truco, cachaça.
Outros eram viciados em
sexo. Aliás , sexo e militarismo caminham
juntos. Internamente se reprime com rigor. Fora do quartel as orgias aconteciam
feito catarse, para purificar as almas acorrentadas pelos regulamentos. No sexo
flertamos a liberdade, ouvem-se gritos, humilhações, ou simplesmente para
desafiar hierarquias, costumes, sistemas. Nada é mais subversivo do que o sexo,
que sempre nos devolve a alma ao corpo. Nesse jogo os papéis se invertiam e
superiores viravam subordinados, autoritários ficavam submissos aos desejos,
palmadas e ordens completamente ilegais, cumpridas com servidão e prazer em
obedecer. Tinha também as Marias –
batalhão, que nos via como peixes num aquário para fisgar... Uma pensão talvez.
Ou aquelas mais assanhadas, loucas pela farda, sonhando ser algemadas. As
relações humanas serão sempre inexplicáveis...
Dentro desse caos forjado, tentava entender a
necessidade, o porquê de se fazer movimentos, gestos perfeitos, para uma
sociedade imperfeita. A perfeição nunca será humana. Não nesta dimensão. Hitler
até que tentou viver a ilusão da raça ariana. Hans Kelsen ensinou que o direito
não deve ser valorado. A aplicação da lei tem que ser literal, pura e
pragmática. Aliás, arrancar a humanidade do ser humano foi um dos combustíveis
para o nazismo.
Com o tempo a minha rotina no quartel tornava tudo
quase automatizado. O relógio biológico já nos fazia acordar sem o despertador.
O corpo já não sentia as dores do parto de renascer militarizado. A serpente já
havia quebrado a casca do ovo...(som de cascavel)
Daí veio a tão almejada farda, que apesar de lisa, sem
insígnias de honra ou glória, seria suficiente para nos distinguir perante os
civis. Poderíamos ser vistos como aprendizes de heróis pelas donzelas;
que só eram donzelas em nossas mentes. Eis que veio o batismo da farda. Os
xerifes de cada pelotão foram aos alojamentos aos gritos convocando todos para
o campo de futebol para estarem fardados dentro de cinco minutos. “É ordem do
senhor Tenente! Missão dada é missão cumprida! É correndo!” A maioria foi pega
de surpresa com a notícia, enquanto ainda dormia. É evidente que nem todos
chegaram dentro dos cinco minutos. Os que chegaram, faltava um pé no sapato,
outro pé de chinelo, alguns chegaram até sem camisa. E a cada um que chegava
atrasado todos aqueles que chegaram no prazo; deveriam rolar na grama molhada e
sujar suas fardas na lama. Levantar rapidamente e tomar posição sentido,
fazendo flexões de braço, sempre sob o comando de um tenente e vários
sargentos. Aqueles que fingiam se jogar na lama, eram arrastados pelos outros
que já tinham suas fardas completamente encardidas com o lamaçal. Mas, como
sempre há os atrasados... Teve um soneca que dormiu tarde demais e não quis ou
não conseguiu se levantar de jeito nenhum. Foi traído literalmente pelo sono
pesado. De tempos em tempos o oficial responsável pelo ranca, (nome dado ao
evento de batismo da farda), fazia contagens para ver quantos estavam
presentes, se havia falta, ou se alguém eventualmente tinha conseguido se
esconder. Foi numa dessas contagens ao pelotão 01 que o tenente constatou que
faltava o mais irônico, polêmico e debochado de todos os presentes, justo ele
Soldado aluno Tártaro. O tenente então perguntou ao xerife do 01:"Cadê o
Tártaro? Vocês querem ficar até segunda rolando na lama?" Lembrando que
era sábado... "Alguém sabe onde está Tártaro?" Três, (os mais
gordinhos), de imediato entregaram o colega. E foram encorajados pelos demais.
Foi uma sucessão de recrutas gritando, “Eu sei senhor! Ele está no alojamento
dormindo. Disse que está passando mal e que não vai descer”! O tenente ficou
irado com a afronta, logo de quem mais dedurava e sacaneava a todos. Os colegas
aproveitando aquele ódio curtido ouviram o tenente dizer: “Vocês têm cinco
minutos para trazê-lo! Quero ver ele nessa poça aqui bem a minha frente. Façam
o que for necessário, senão vocês ficarão pagando por ele, até que eu me
esqueça. Vocês me ouviram?” Todos os pelotões foram uníssonos: “Sim senhor!” E
a partir daí foi uma surra de manta. Vários recrutas, os mais fortes, subiram
pé por pé, colocaram sabonetes dentro das toalhas e começaram a dar uma surra
no recruta folgado. Todos ao mesmo tempo, cerca de trinta homens espancando,
descontando toda a raiva enrustida de ter que levantar cedo, rolar na lama,
raiva do oficial e dos sargentos que gritavam sobre todos... É lógico que o
culpado, aquele que foi a descarga de todos para extrair o ódio, é claro, tinha
um nome: soldado Tártaro. Assim que o pegaram, o rebelde tentou reagir, mas,
foi em
vão. Apanhou mais e mais até que cedeu
as pancadas e foi carregado pelos demais até ao encontro do tenente e jogado na
poça de lama, como se fosse um porco selvagem. Enquanto todos os outros
gritavam, como se estivéssemos entre soldados romanos ou entre as galeras de
Vickings. O escárnio foi geral. E assim terminava o nosso batismo sem
recebermos nenhuma benção ou salvação... Apenas lama...
Devidamente fardados, a partir de então os empenhos e
quantidades de escalas de serviços aumentaram exponencialmente. E o que era
sonho virou pesadelo. Porém, como em qualquer evolução, não há receita para o
retorno. Muitos começaram a sentir saudades dos tempos em que não tínhamos
farda; em que ainda não “éramos heróis”...
Escalavam-nos nas festas de casamento, folias de reis,
festas juninas, e as mais variadas festas de igreja. Quando víamos vereadores
nos quartéis no meio de semana, era sinal de que os sábados e domingos já
estavam comprometidos. Sargento Tacanho sempre dizia em alto e bom tom: “A
polícia não é colônia de férias. Quem entrou sabe ou deveria saber que não
haverá mais sábados, domingos ou feriados. Vocês serão os guardiões do povo. E
heróis não dormem. Quem não estiver satisfeito passa na seção de recursos
humanos e solicite a sua baixa". Com o tempo a quantidade de serviços foi
se tornando tão constante que cerca de dez recrutas foram a P1 (seção de
Recursos Humanos), pedir baixa. Porém foram convencidos pelos oficiais ao
contrário. Não porque esses oficiais fossem bonzinhos, mas, porque se as baixas
se consumassem, teriam que fazer relatórios dando satisfação ao comando geral.
Isso não seria nada honroso para quem lustrava o coturno como se fosse a honra.
Além de manter o efetivo reduzido, o oficial via sua promoção ameaçada.
Com o tempo alguns colegas foram pegando o ritmo da
coisa e aprendendo a dissimular. Todas as segundas e quartas havia aulas de
crisma. E quem participasse delas, ficava dispensado de se apresentar em forma
as 07hs no pátio. A apresentação dos "recrutas de Cristo" seria as
08hs direto na sala de aula; sem passar pela inspeção de farda, barba e
coturno. Porém, um tenente ousou brincar com o poder do capelão dentro do
quartel. E numa das aulas entrou na sala de óculos escuro, tridente em mãos e
começou a gritar dizendo que iria caçar todos os recrutas cristãos. Era como se
o tenente brincasse de Estado Islâmico dentro do quartel. Repetia várias vezes
de que ele era o capeta – mor. E dava gargalhada como se tivesse incorporado
algum santo ou ingerido algum tipo de droga. Na hora todos os presentes riram.
Foi uma festa! Assim que terminou a aula, alguns alunos cristãos denunciaram o
fato ao capitão, que ficou furioso e mandou transferir o tenente zombeteiro
para outra companhia. Bem longe da má influencia aos seus alunos. O destino do
“capeta – mor", quiçá nos quintos dos infernos...
As aulas que mais me davam prazer eram as do direito.
Nele eu encontrava algum “heroísmo”, de poder garantir através deste, a
cidadania aos injustiçados, ou aos menos favorecidos do sistema. Cidadania que
eu ainda não sabia; não percebia que havia perdido.
Nas aulas sobre o Regulamento Disciplinar Policial,
havia artigos em total antagonismo com aquilo que eu acreditava poder levar ou
garantir ao cidadão. Para me casar teria que pedir permissão ao comando. Para
ir ao banheiro também. Isso lembrando o mínimo. Essa contradição foi formando
ou deformando as minhas crenças, minha ilusão com a profissão. Era uma espécie
de ritual de iniciação muito mais visceral do que batismo da farda. Descobria
serviço a serviço que se o cidadão tem dificuldades de exercer a cidadania em
sua plenitude, o militar mesmo querendo exercê-la jamais a teria; se tutelado
por um regulamento anacrônico e mordaz. E nessas horas me invadia a mente a
música do jardim de infância, cuja letra nunca fora tão atual, com letra
simples e extremamente profunda:
“marcha soldado, cabeça de papel, se
não marchar direito, vai preso pro quartel”... Não havia diálogo.
As mazelas do Estado a cada dia
ficavam mais expostas. Viaturas eram proibidas de fazer rondas, por falta de
gasolina. Por isso sempre ficavam paradas em pontos estratégicos, nas praças. A
administração proibia qualquer militar de dar entrevistas, muito menos falar
sobre o assunto. Muitos colegas esmolavam em nome do Estado, e pediam peças aos
comerciantes para manter o policiamento motorizado.
E o mundo que era dito perfeito do
lado de dentro do quartel, se mostrava com o tempo, corroído pelas negociatas.
Havia um fogão industrial enorme que ficava no salão de festas. Para arrastá-lo
seriam necessários uns seis homens. E qual não foi a surpresa na manhã de
domingo; o adjunto foi forçado a dar o anúncio ao comandante da unidade, de que
autores ignorados furtaram o fogão de dentro do quartel. Qual vergonha maior
haveria?! De repente alguns computadores, televisões começaram a desaparecer
nas mais diversas seções. E como havia o fluxo de militares das várias regiões
do Estado, até por conta de uma denúncia de outra região, se descobriu que um
tenente estava com um dos quartos de seu apartamento, repleto de televisores,
computadores, todos com a etiqueta daquela unidade da federação. Onde estaria
honra nisso? O delito estava escondido na honra?
Tudo era marcado pela honra! Sinônimo
de respeito aos símbolos da instituição, da pátria. Honras militares, sempre
foram referencia para qualquer novato ingressante na instituição. Honra são
códigos de conduta de determinado segmento. Mas, como pode haver honra em
mentir para si mesmo e para o cidadão; que é quem paga o imposto; ao dizer que
este terá segurança, se não há efetivo, se não há viatura, se não há
transparência na gestão da coisa pública?
Todos nós éramos leigos no direito; e
talvez por isso, a surpresa foi muito negativa quando estudávamos as causas da
única pena de morte aceita no Brasil até os dias de hoje: para os crimes de
deserção em tempos de guerra. Mas, sempre tem aquele que é mais contestador:
“Mas como assim? E se o governo for corrupto?” E se a população for contra a
guerra?” – “Calma estabanado...isso é se houver uma guerra, e se você desertar.
Senão você vai continuar vivo, senão morrer na guerra, é claro"...E o
recruta continuou a questionar: “Mas, o senhor viu no Iraque? Disseram que
havia arma química e era tudo mentira. Qual a honra de lutar para defender a
mentira ou um corrupto? “Santa inocência! O inocente, ainda está em tempo de
você pedir sua baixa... Aqui só queremos os fortes! Os destemidos! Militar não
deve cultivar o medo". E diante do argumento sempre inquestionável,
qualquer questionamento se esvaziava e tudo voltava à calmaria doravante no
quartel dos recalcitrantes...
E a música voltava a inundar minha
mente:
“Marcha soldado, cabeça de papel,
senão marchar direito vai preso pro quartel”...
O militarismo é mais uma das muitas
ferramentas de anestesia e padronização social. Assim como a psiquiatria,
psicologia e principalmente a educação escolar. Quer algo mais excludente do
que a escola e seus dogmas de avaliação?
Dentro de mim havia uma pessoa, um
indivíduo dividido entre o rigor da lei, que jamais deveria ser relativizado,
em confronto com o ser humanizado, ponderado, que deveria usar a sensatez para
resolver os conflitos. Se por um lado as guerras nos mostram a rigidez e força
da pólvora, por outro expõe a fragilidade dos refugiados, a fome, a cede e o
medo. Não preciso ir a uma guerra para ter noção do abismo entre a moral e os
costumes. Como reprimir professores grevistas, reconhecer alguns como sendo
meus antigos mestres, e ter de agir com a força do bastão para dissipá-los,
dissuadi-los, dispersá-los; sem que surja culpa humanitária? O bem e o mal
dentro de mim. O bem e o mal dentro do Estado, que garante a liberdade de
manifestação e pune aqueles que se opõe a ele? O bem e o mal no professor que
me ensinou a pensar e agir contra os opressores. Onde foi que eles erraram?
Onde foi que eu errei? Como coabitar num só corpo o libertário, o subversivo
com o repressor, opressor com o sínico? O teórico com a práxis? Como exorcizar
os meus demônios, se eles estão junto com meus deuses a traçar os destinos da
história, dentro de cada um de nós? Alguém sabe dizer onde está a honra nessas
horas? E por falar em deus, vocês se lembram quem o pregou Jesus na cruz?
Desconfiam sobre quem matou Tiradentes? Imaginam quem matava os cristãos na
Idade Média durante a Inquisição? Quem perseguiu e matou os civis nas
revoluções socialistas, fascistas, nazistas? Oh senhor! Nos perdoe os soldados
de todo o mundo, pelos crimes durante a história! Liberte-me dessa culpa!
Livra-me dessa maldição. Com quem poderei confessar os tantos pecados que vi?
Outros tantos que tomei conhecimento? Se a ti senhor eu vos preguei na cruz?
(*** buscar passagem bíblica
Testemunha de Jeová se recusam pegar em armas). Joao, Efésios...
Talvez seja por isso que a mim nem
sequer me foi dado o direito de me expressar, sem que algum crime eu cometa.
Lembro-me daquele soldado americano que durante a invasão do Iraque, filmou e
publicou na internet, o exército do seu país matando civis dentro de uma van
com mulheres e crianças. Onde está a honra nisso senhor? O soldado foi
condenado à prisão perpétua por traição. Imaginem! Traição à pátria?!
Quem trai é quem obedece ou quem dá as ordens; ou assiste as traições? Para
qualquer humanista o governo é quem traiu seu povo. E o que era glória se
transformou em estorvo perante uma guarnição difamada. Afinal o que são
Direitos Humanos? O que define essa política? Aliás, sempre a maldita política
capaz de definir até o que é humanidade, o livre-arbítrio. O que é a
política? O poder cega seus donos e esmaga seus comandados. Políticos que
definem quem pode ou não pode falar. E por que dariam voz aos vassalos?
Soldados nada mais são que escravos, esteio, sustentáculos de quem está no
poder. E sem liberdade de expressão, como hei de me erguer e ostentar o olhar
altivo, marcial; se abafo o peso do que sei sobre os bastidores do Estado? Como
hei de manter a leveza da alma se na ponta da baioneta está o futuro do meu
país e ao mesmo tempo aquilo que me viola, que me obriga a fazer o que não está
na minha humanidade? Como hei de manter a leveza da alma se não me perguntaram
se quero lutar, matar para defender algo ou alguém que não merece defesa? E se
me recusar a usar as armas? Irei morrer pela coragem de dizer não aos donos do
poder? Será que eles são os donos da vida? Afinal quem são os donos do poder? É
o povo ou aqueles que ele escolhe? Eu sou uma parte do povo; e guerrear contra
os meus é como se eu me automultilace, cortasse um pedaço de mim. Como voar num
terreno minado sem ser um kamikaze? Não me restam muitas opções: drogas, jogo,
sexo. Missa, culto que me restabeleça o nexo da vida. Alguns não conseguem e
tropeçam no caminho. Quando se está perdido as pedras parecem gigantes, muros e
montanhas imaginárias. Eu tentei socorrer aquela sentinela que atirou contra o
peito. Mas, quem de nós nunca perdeu o sentido? Quem nunca se perdeu de si
mesmo? Quem nunca se perdeu dos significados que deu a vida? As guerras nem
sempre são visíveis, externas... Há um campo de batalha dentro do eu; e um
deserto dentro da farda. Às vezes matar ou morrer não faz mais sentido... Fugir
do deserto ou viver as batalhas internas? Qual o sentido conquistar medalhas
sobre corpos putrefatos; ostentá-las sobre o meu próprio ser indigente, sem
moral, dignidade, humanidade, comemorando uma vitória sem honra, onde quem
vence perdeu mais do que os que morrem?...
Ninguém é, todo mundo está militar. E
quando se está militar o homem incorpora um fardo. Uma espécie de cruz
imaginária. E mesmo que não sirva mais aquela Força ou Exército, sempre paira
no ar, sob aquela alma, um olhar atento. Seu para com os outros. Dos outros
para com o ex - militar. O olhar é sempre o de quem espera um crime... Ao
menos é este o sentimento que alimenta o preconceito de ambos. Dos civis para
com os militares e vice versa.
Hoje o estupro é crime; não o foi
para os cavalheiros no passado. Na guerra, tão visceral quanto invadir
territórios era violar corpos, penetrá-los como troféus da conquista e viver
gozo do poder sob as mulheres dos soldados derrotados. E quem iria vigiá-los?
Quem iria denunciá-los? Isso era o que hoje conhecemos como cavalheiro...
O mais perigoso guerreiro é o
que luta contra o seu próprio opressor. É o que mata seu comandante se preciso
for para cessar as chibatadas. É o guerreiro que abaixa suas armas para não
prender seu irmão de farda durante um levante amigo (uma greve). Talvez aí haja
um pouco de honra.
Será que a humanidade está preparada
para ser livre? Ou será que vivemos uma overdose de libertinagem? Seja como
for, o militar é um sujeito amaldiçoado. Um sujeito que não é sujeito de si
mesmo. Mas, quem o é? Militares não podem ter preferências políticas,
pessoais, sexuais. Tudo no militarismo é subversão. Tudo é ameaça. Tudo que
signifique liberdades. Vivemos mas, não convivemos. Sobrevivemos mas, não
vivemos. Ou se está muito acima ou se está muito abaixo. Ou se é superior ou
nos querem inferior. No diapasão social somos queridos e lembrados apenas nas
maiores tragédias naturais ou sociais. Às vezes até nos requisitam para depor
governos ou combater a violência. Chegam a nos pedir que façamos pena morte. É
como se vestíssemos toga, e não farda. Ai é que nascem os grupos de
extermínios, “é quando nascem os monstros”. Não vestimos toga, vestimos farda.
Entre mortos e vivos que perambulam sem fé, embriagados pela valoração em
demasia das liberdades que buscam ou que acreditam ter. Essa dicotomia parece uma
tela de Salvador Dali...
Quando você olhar para um soldado na
rua veja não um ser humano. Ele não é cristão, não é pai, mãe, filho. Ele não é
racional. Sua lógica apenas obedece à lei. Leis que são feitas pela política.
Política que é eleita por homens. Homens que são imperfeitos. Então não olhem
para o militar na rua e lhes exija perfeição, nem discernimento, já que ele não
dispõe de livre arbítrio no exercício de suas funções. Soldados apenas cumprem
o que está na lei, como se fossem a “tropa” de Hans Kelsen sem o nazismo
declarado. Violência urbana é bem mais disfarçada, chacinas são campos de
concentração velados. Tão impactantes até que surjam outras em bairros, estados
ou países diferentes. Como a fuga de imigrantes que morrem em fronteiras diferentes
buscando sua dignidade, lutando por sua humanidade. Desertores são soldados,
espécie de imigrantes que já estão praticamente mortos socialmente, mas, que
ainda lutam pelo direito de não lutarem. Paradoxo da luta pela defesa da
humanização, pelo ressurgimento da honra, o respeito, a vida, efetivação dos
verdadeiros Direitos Humanos. É na deserção que está honra, diria Mahathma
Gandhi...
Mas para os donos do poder, que não é
o do povo, fazer proselitismo político, posar para as fotos, fazer discursos
ufanistas talvez lhes devolva os eleitores e os votos. Em cima da honra da não
violência, se distorce e se convence que houve uma desonra chamada deserção. E
a desonra agora é transformada em honra política. Símbolo de orgulho de uma
nação, que não sabe o que é honra e muito menos o que é nação. Vivem os dias e
noites, não sabe o que é disciplina, desconhece o que é o militarismo e seus
eremitas.
No final do discurso já está feito o
paredão, todos os apostos, fardas engomadas, coturno lustrados, microfones, câmaras,
ação! Para transmitir ao mundo o quanto é desumana a tentativa de humanizar a
disciplina do Estado na forma militar, quando quem está no poder, eu, você, o
povo sem saber; é quem assassina os inocentes e alimenta aqueles que se nutrem
do poder. A covardia e a traição é individual ou coletiva? A covardia foi do
soldado ou é de quem acredita no Artigo 392 Decreto Lei... Na Constituição
Federal daquele país chamado Honores?
Na antiguidade a covardia não estava
nos soldados que se negavam a lutar; mas, na submissão dos que perdiam a guerra
em aceitam trabalhar como escravos para o exército vencedor. Se for matar o
próximo, por mero capricho de quem me comanda que eu mesmo me extermine como
algo mais digno. Matar a si próprio talvez sirva de reflexo para demonstrar ao
próximo o quão estamos doentes. E apesar da aparente doença de quem se
autoextermina, talvez seja um espelho para curar os demais. Como a vacina que
precisa do veneno para criar anticorpos. Precisamos de excrementos de
violência, de desumanidade, para fazermos anticorpos, resistência ao
proselitismo, dogmas e as cegueiras sociais... Provar do veneno da mentira para
que tenhamos clareza em demonstrar a verdade escondina nas demagogias,
mentiras, politicagens, daqueles que falam em humanizar, mas exploram seu povo,
roubam a saúde, sua juventude, sua esperança. Inventam crises como se trocassem
de roupas, e mais uma vez o povo é quem irá para o front alimentar a sanha megalomaníaca,
sustentar as vaidades, para demonstrar quem é o mais medíocre, o que mais
desonra, o que mais se disfarça com o discurso da honra, da gloria. A Historia
é sempre contada pelos que vencem pelos que se fazem temer, pelos que se
alimentam de sangue. Se há honra, que eu a escolha, que eu decida sobre o meu
corpo, minha vida, que eu possa ser o vencedor da minha batalha na defesa da
minha dignidade, exercer minha discricionariedade. Contar a minha verdade sobre
a história de que não há honra em matar, de que não há humanidade em morrer por
farda, povo ou sistema algum, se não pudermos viver nossa vida com
independência. Não posso contrariar o seu mandamento senhor: "Não
Matarás!" Se em vida iremos continuar presos a vontades alheias, então,
que minha morte seja a melhor opção, para quem sabe; encontre a liberdade da
alma livre do corpo. Talvez lá encontre a honra que tanto perseguimos em vida,
mas, que de tão morta só teremos na passagem desta para outra. Perdoe-me
senhor... A honra me desertou.
“Quisera eu o perdão que destes a Paulo”... Neste mundo desumano quero ser o
senhor das minhas vontades, quero ser eu dono da minha honra! Quero ser livre
do mundo humano... Quero ser deus!
Apagam-se as luzes, inicia-se o rufar
dos tambores, ouve-se o tiro que executa o soldado Tártaro, o desertor da
honra...
Acendem-se as luzes e o soldado
Tártaro aparece caído e ensangüentado.
Fim
Palco: uma cadeira ao centro. Aos lados paredões sujos
com sangue daqueles que foram executados, pena máxima para os desertores.
Propostas de figurinos:
1 – soldado trajado de macacão de um lado azul e do
outro vermelho, com muitos broches espalhados nos dois lados do macacão
misturando símbolos da esquerda, direita, ao mesmo tempo em que ironiza todos
eles. Entraria marchando com mastro da bandeira yin yan (bem e o mal juntos),
para demonstrar tanto ambigüidade do soldado como da sociedade a qual ele
representa. A marcha terá ao fundo Bolero de Ravel.